CERI TOH

Ceri toh quer dizer Seridó na língua indígena. O historiador Câmara Cascudo escreveu que Ceri toh significa sem folhagem, pouca folhagem, pouca sombra ou cobertura vegetal, segundo Coriolano de Medeiros...Também ouvi de meu pai que significa paisagem desnuda e gosto mais dessa expressão.
Segundo os judeus significa "refúgio Dele", originada da palavra hebraica she ´eritó, assemelhando-se muito com a palavra Seridó.
De qualquer forma, esta palavra está impregnada em mim desde tempos imemoriais...

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Anunciação


O que de mais triste se ouvia na pequena cidade era o sino da igreja a anunciar os mortos. A tristeza tomava conta da casa, do quintal, assomava à soleira da porta. Entranhava-se pelas unhas, roupas, suores, cabelos e anuviava os olhos. Eu olhava o muro das casas descascados. Meus olhos de menina viam o belo onde havia cascas e cascalhos. Subia o muro feito equilibrista e olhava o enterro de cima da casa. As meninas mortas tinham minha idade. Morreram abraçadas. Foram enterradas juntas, lado a lado, pois que a amizade não tem fim com a passagem. Brincavam juntas pelo cemitério quando todos dormiam. Colhiam as flores como quem colhe algodão mocó, branquinho, branquinho. Riam-se tanto e corriam entre os mortos de cá, visto que estar morto depende de que lado se está. Eram meninas libertas do corpo, podiam voar. E voavam baixinho, por cima dos túmulos. Eu vi. Voavam ao som da canção que se perpetuou na minha memória: “se ouvires a voz do vento, chamando sem cessar”…
Foi com essa memória afetiva que outro dia, ao passar ao lado do cemitério da cidade, lembrei-me do dia em que me trancaram lá dentro, a noite caindo, as luzes acendendo e eu passeando entre as covas dos anjinhos sem me dar conta. Foi aí que o sino da igreja tocou a hora do Ângelus e foi como se todos os anjinhos despertassem e gritassem juntos: “você está presa, você está presa”!!!! A constatação de que eu adentrava um mundo que era só dos mortos caiu sobre mim como uma mão de aço. Gelei. Comecei a ver anjinhos pulando por cima dos túmulos. Alguns brincavam de pega pega correndo entre as galerias. Outros subiam nas catacumbas mais altas brincando de escaladas. Foi assim que vi. A hora do crepúsculo transformou-se no pior filme de terror da minha vida. Quis correr, mas o meu coração torto e apavorado se recusava a bater. Não sentia minhas pernas e meu jeito atabalhoado de ser me fez correr na direção contrária à saída. Uma angústia me subiu à garganta e saiu em forma de grito. Destrambelhadamente corri pelo cemitério todo, procurando uma saída. Ouvia vozes e risadinhas e quando as luzes acenderam, parei estarrecida: os mortos brincavam. Não estavam preocupados comigo. Muitos conversavam entre si, comentando de quem veio visitá-los e falavam de saudades de seus entes queridos. De como era ruim não poder mostrarem-se. O suor escorria gelado em minhas costas e veio a simples constatação que trago comigo até hoje: essa coisa de vida e de morte vai depender de que lado você está.
De repente, alguém em cima do muro do cemitério me grita: “ ei menina, aqui, aqui, me dá sua mão”. Corro em direção da voz e da liberdade, subo num túmulo antigo, alto e agarro aquela mão macia que me puxa sem dificuldades e uma vez em cima do muro, vendo o outro lado da vida, olho uma vez mais para dentro do cemitério e vejo tudo em silêncio. Aquele silêncio que nos traz imensa paz, que nos dar vontade de nos refugiarmos nele, um silêncio cheinho de luz.


Este pequeno incidente marcou-me irremediavelmente. Incidente este que, trinta anos depois, me faz sentar num banco que existe de frente ao cemitério e me perguntar de onde saiu aquele homem que puxou-me pela mão tão amorosamente e que, ao olhar para dentro do cemitério e voltar-me para agradecer ele não estava mais lá. Quem sabe, quando eu adentrar definitivamente esse recinto não terei mais medo nem pavor. E ele estará me esperando, sorrindo e relembrará aquele fatídico dia em que uma viva adentrou seu mundo e nunca mais retornou nem mesmo para uma oração de agradecimento. Ele não sabe que naquele fatídico dia eu deixei lá dentro minha coragem, meus silêncios e toda minha gratidão.

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