CERI TOH

Ceri toh quer dizer Seridó na língua indígena. O historiador Câmara Cascudo escreveu que Ceri toh significa sem folhagem, pouca folhagem, pouca sombra ou cobertura vegetal, segundo Coriolano de Medeiros...Também ouvi de meu pai que significa paisagem desnuda e gosto mais dessa expressão.
Segundo os judeus significa "refúgio Dele", originada da palavra hebraica she ´eritó, assemelhando-se muito com a palavra Seridó.
De qualquer forma, esta palavra está impregnada em mim desde tempos imemoriais...

segunda-feira, 30 de agosto de 2010


Foi de tirar o fôlego o encontro. Faltou ar, chão, maturidade e aflição. Ele não era mais um menino, via-se em alguns cabelos que teimavam em ficar grisalhos. Mas o sorriso era o mesmo de tanto tempo. Seus olhos disseram a mesma coisa de anos atrás. O reencontro foi duplo. Ela também se reencontrou. Percebeu que havia ficado para trás com ele. Tinha-se perdido mais e tanto que ela não era mais ela, era uma impostora.
Com a boca seca de beijos, com a cara fria de impostora, desejou beijar-lhe a alma, o corpo, o sangue, a sede, a morte. Sim, porque reencontrá-lo foi morrer, morrer e descobrir a verdade. Sendo uma impostora, sendo quem ela não era, tornou-se passível de atos de monstruosidades. Tendo que usar máscaras, ela escondeu o que de mais precioso tinha, usou de artifícios para continuar vivendo.
Salvar-se. Precisava urgentemente se salvar. Seus olhos pediram-lhe socorro, mas ele continuou impassível diante do seu desespero, diante do seu sonho de adolescente que foi, tão constrangida. Amor não existe. Pronunciou essas palavras como sentença de morte. Ela revirou-se toda, procurando uma brecha para salvar-se daquele olhar. Todos os quartos que conheceu na vida estavam vazios. Alguns raros amigos fugiram ao constatarem sua verdade mais íntima. Ela não queria envelhecer jamais. O tempo que durou aquele olhar foi uma eternidade. Sentia-se envolta em chamas, em lençóis de seda, em negros sonhos de amor.
Fez um último esforço e balbuciou um até logo. Ele esquivou-se do beijo e apertou-lhe a mão. Ela ficou a olhar o instante que a separava do abismo que se agigantava diante dela como única proposta de sobrevivência. Tornar-se uma mulher como todas as que se escondem atrás de uma prisão chamada vida normal. Desejou voltar-se e dizer-lhe uma última palavra, tentar marcar um outro encontro mais tranqüilo, onde ela, recuperada do momento, pudesse lhe falar do seu amor estranho e cego. Com o coração ainda batendo de tanto silêncio e lentidão, procurando as palavras certas para não denunciar seu constrangimento, ela virou-se e o chamou pelo nome. Um nome que soou como sua salvação do tédio, da mesmice, das facas da rotina. Um nome que ficou atravancado na garganta enquanto ele desaparecia na esquina da rua.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010



A lua está gritando no céu. Você não sabe, mas é meu grito. Pedi que gritasse por mim. Perdi minha doçura pelo caminho e tenho que me acostumar com esse meu novo jeito de ser. Ao longo da estrada fui carregando uma palavra aqui, um punhal no olho, uma pedra na mão e não saberia chegar ao território dos candangos sem minhas armadilhas. Caminhar por esses atalhos espinhentos não é tão fácil. Até minha feminilidade ficou espetada num desses pés de xique-xique que encontrei lá na curva do caminho, onde o diabo perdeu as botas. Pois foi lá que perdi minha doçura e nem seu anjo, aquele, das palavras mais doces, foi capaz de achá-la para mim. Já derramei tantas lágrimas que não sou mais capaz de chorar. Dia desses, um anjo diferente, com uma armadura de couro e tez bronzeada, me disse assim: Minha menina, você esqueceu o mais importante. Você desaprendeu a amar o caminho. Olhei bem no olho dele e respondi: Meu anjo moreno, onde perdeu suas asas? Por acaso essa armadura de couro protege o seu coração? O meu foi esquartejado antes que eu começasse a andar por essas terras. Como amar o caminho sem ter coração? É o mesmo que querer voar sem asas... O anjo não disse mais nada, mas tornou-se meu companheiro de viagem e procura por suas penas e seus pecados mais doces. Não fala muito, mas mantém uma serenidade que me faz dormir de vez em quando...
A lua continua gritante no céu desse quarto que pressinto ser meu (meu?), mas temos que tomar algumas decisões e não tem sido fácil. Para os homens (sejam eles anjos ou demônios) tudo é mais fácil. Mas para nós, mulheres (sempre guerreiras) tudo é lume de faca, de punhal sem corte. De uma maneira ou de outra, saímos mais do que feridas...

quinta-feira, 19 de agosto de 2010




Liébe querida,
Você me pergunta o que é o seridó e onde fica...

O seridó é uma região bastante árida que fica no interior do Rio Grande do Norte. Tem pouquíssimas chuvas durante todo o ano, mas isso faz a diferença nesta região. As pessoas que nasceram nas cidades que fazem parte do seridó são irmanadas, como se tivessem o mesmo sangue. São fortes, determinadas e amáveis. Amam a terra em que nasceram com paixão. Às vezes, precisam ir embora, mas um dia voltam, nem que seja para visitar parentes e amigos e geralmente voltam na época da festa do padroeiro da cidade.
O seridó tem rios temporários,apenas em alguns meses do ano correm águas em seus leitos. No restante do ano eles viram possibilidade de plantio para alimento do corpo e da alma. Tem serras, cordilheiras lindas, tem cercas feitas de pedras, colocadas uma a uma pela mão calejada do agricultor. Tem novena, tem sino repicando chamando as pessoas para a missa das seis horas.
No seridó tem festa nas ruas quando chove, tem barragens feitas para armazenar água, tem feira livre, tem tocador de sanfona e escrevinhador de sonhos. Tem grandes homens e grandes almas. Tem espinhos, mais que flores. Tem pedras, mais que verde. O tempo é cinza, o calor insuportável. As noites são serenas. Algumas vezes no ano, tem trovoadas e rios botando cheia.
As pessoas são bonitas, bondosas, embora tenham na pele e nos olhos a secura do sertão. Mas é um sertão amado, agraciado, forte, de homens que lutam mas que também sabem chorar com os olhos e com a alma.
O seridó é nossa pequena pátria, é um pedacinho esquecido nos cafundós deste nosso Brasil. Mas é lindo, é nosso, é uma parte de cada um de nós, seridoenses.
Mas o sertão não é só paisagem, o sertão é um modo de viver.

Vou, talvez cansada sobremaneira, de algumas farpas menos polidas, de algum tropeço mais sangrento, gangrenado pelo tempo. Perco as linhas e os arrecifes, torço e retorço pequenos novelos guardados dentro de um baú de coisas vãs e doídas, talvez bonitas ou espaçosas demais.
Vou, guardando os passos, olhando de soslaio para o poente, pois não me interessa se desço ao sul ou se parto em três o bolo de mel que trago no bizaco, feito de tecido epitelial.
Mas vou, já lhe disse que vou. Não sei ao certo se vou chegar, se terá algum vulto secular espiando de longe, olhos secos de poeira, coração na mão... Não sei se será chegada ou uma nova partida, pois ao atingir a subida, a vista se alonga indefinidamente...
Vou, faltando alguns apetrechos para o descanso, mas levo ópio, mágoas, choro e um lençol de cobrir estrelas, linha para costurar cansaços e música para adormecer.
Vou sem voz, sem sons, sem choro, já não sou inteira, alguma coisa teria que faltar nesse solo seco.
Vou porque me prometi, vou porque preciso ir, me livrar de certas tolices, porque minha vida não é bela, não tem rosas nem gerânios, tudo é cinza, seco, murcho, não tem raiz.
Vou porque a amo mesmo assim, sem nenhum atrativo mais aparente, como a um poeta morto que nada mais espera, como a um cinto de cilício penetrando a carne, como o vento seco da estiagem varrendo o chão do terreiro ao meio-dia.
Vou com as botas e a sabotagem. Com a minha ignorância e a dificuldade de te escutar porque me fiz surda e impenetrável.
Vou, e não me siga, não me olhe, não me reconheça. Nem hoje, nem amanhã, nem nunca.
A minha desilusão é minha e só minha. Não ouse sequer me denunciar.
Vou, porque preciso me reinventar.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010






Pode ser que não haja uma tarde azul para mim nesse fim do dia. Pode ser que eu esteja vendo coisas e a cor amarela da flor do algodoeiro que há de frente a minha casa seja um delírio de quem passou a noite em claro. Mas elas, as flores, me incriminam. Olham-me como se dissessem: sabemos. E de repente, me senti completamente desnuda. Acuada em todas as direções. Então me descobri também sozinha. Numa tentativa de fuga, fechei a janela que dá para a rua. É impossível conversar com as flores. As amarelas. Fosse outra cor que me permitisse atalhos e descaminhos, seria até mais fácil, mas não a cor do sol nascente. Elas, as flores, sabem o que não sei. Sabem que sequer almejo saber. Elas sentem-me. Gritei quase horrorizada: mas eu também sinto. E me senti muito velha. Como se o tempo corresse, corresse e me desobrigasse. E a vida caísse sobre mim com seus cabelos brancos, as pernas bambas e os sulcos na carne. Porque viver ultrapassa meu entendimento. Viver me exige constantemente uma escolha. Como se eu pudesse fugir da minha casa que é a dor e nesse mesmo recinto me fosse arrancada a alma. Então meu escuro cresce dentro do meu quarto. Porque assim, desnuda de vida não posso ir. Não posso caminhar sem minhas máscaras, meus véus, minhas armadilhas. Na minha incompreensão me mistifico. A minha intuição me guia nessa estrada que é tudo, menos repouso. Não sei onde colocar meu coração nessa bagagem. Termino por deixá-lo jogado por aí, intuitivamente. Pode não ser o melhor a fazer. Pode até parecer loucura, sombra, surto. O que fazer para viver sem sofrer perdas e danos? Viver à mercê do imprevisível talvez me baste. Só não sei o que fazer com as flores amarelas, talvez as arranque e as leve pra você. Em tardes assim, em que a brisa do Atlântico beija de mansinho meu rosto e brinca levemente com meu vestido de flores azuis, em tardes assim, eu aproveito a solidão para me espantar. E é com os olhos cheios de espanto que me atrevo a abrir a janela que dá para a rua e a cor amarela me fere novamente os olhos. Só que agora, eu já consigo amá-la.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010


Por que a chuva chega a molhar minha alma? Por que sou tão seca num dia ensolarado? Minhas raízes estão lá no sertão e tiram da terra seca a essência da vida. Minha alma lança-se em fuga, empreende vôos inimagináveis para ser cerca de pedra e mandacaru. E se a alma levita de olho arregalado de espanto e prazer, o corpo padece as malquerenças do verão quase que perpétuo e se fixa no solo fincando raízes. Há pelo ar prenúncio de que todos os sonhos vêm com os ventos de inverno. E a brisa mansa com cheiro de verde acalenta com uma canção de rio manso correndo. Quem nunca viu a seca de perto jamais vai me entender. Quem nunca viu um choro sem lágrimas não sabe a dor de sorrir numa boca com fome. O sertão é tão vasto que existe em todas as almas. Ávida, busco o sumo doce da flor de mandacaru. Agressiva, devoro todos os quereres com a fome do carcará. E se há de ser lenta a agonia da morte, que venha como chuva fina que dá de beber a terra seca, de uma secura quase que eterna, mas que abriga em seu seio o mistério da vida e da morte...
Reencontro Acari. O cheiro de verde entope as narinas. Tudo concorre para a alegria: a feira de rua, o burburinho da chuva de ontem que ainda respinga das algarobas, a conversa mole no café do mercado, a beleza dura das pedras do Gargalheiras. A cidadezinha tem seus encantos escondidos em pedra bruta. Nos olhos das pessoas. Nos sonhos das meninas adolescentes, como um dia eu fui. Reencontro-a comovida. Mora dentro de mim como um espinho de coroa-de-frade, belo e dolorido. Tem altos e baixos como a minha alma discreta. Respiro a terra em que nasci e encontro em mim todos os seus becos com todos os seus pecados mais indecentes. Encontro em mim a beleza da canção do sino tocando a hora do Ângelus. Um anjo abençoa toda a cidade e encantado torna-se homem para viver por lá. A cantiga da carroça de boi, a roupa de couro, o queijo quente, a tapioca, o tamborete e a rede na varanda fazem parte de mim. Como não existiria a poesia, se ela está presente em mim desde tempos imemoriais?