O que de mais triste se ouvia na
pequena cidade era o sino da igreja a anunciar os mortos. A tristeza
tomava conta da casa, do quintal, assomava à soleira da porta.
Entranhava-se pelas unhas, roupas, suores, cabelos e anuviava os
olhos. Eu olhava o muro das casas descascados. Meus olhos de menina
viam o belo onde havia cascas e cascalhos. Subia o muro feito
equilibrista e olhava o enterro de cima da casa. As meninas mortas
tinham minha idade. Morreram abraçadas. Foram enterradas juntas,
lado a lado, pois que a amizade não tem fim com a passagem.
Brincavam juntas pelo cemitério quando todos dormiam. Colhiam as
flores como quem colhe algodão mocó, branquinho, branquinho.
Riam-se tanto e corriam entre os mortos de cá, visto que estar morto
depende de que lado se está. Eram meninas libertas do corpo, podiam
voar. E voavam baixinho, por cima dos túmulos. Eu vi. Voavam ao som
da canção que se perpetuou na minha memória: “se ouvires a voz
do vento, chamando sem cessar”…
Foi com essa memória afetiva que
outro dia, ao passar ao lado do cemitério da cidade, lembrei-me do
dia em que me trancaram lá dentro, a noite caindo, as luzes
acendendo e eu passeando entre as covas dos anjinhos sem me dar
conta. Foi aí que o sino da igreja tocou a hora do Ângelus e foi
como se todos os anjinhos despertassem e gritassem juntos: “você
está presa, você está presa”!!!! A constatação de que eu
adentrava um mundo que era só dos mortos caiu sobre mim como uma mão
de aço. Gelei. Comecei a ver anjinhos pulando por cima dos túmulos.
Alguns brincavam de pega pega correndo entre as galerias. Outros
subiam nas catacumbas mais altas brincando de escaladas. Foi assim
que vi. A hora do crepúsculo transformou-se no pior filme de terror
da minha vida. Quis correr, mas o meu coração torto e apavorado se
recusava a bater. Não sentia minhas pernas e meu jeito atabalhoado
de ser me fez correr na direção contrária à saída. Uma angústia
me subiu à garganta e saiu em forma de grito. Destrambelhadamente
corri pelo cemitério todo, procurando uma saída. Ouvia vozes e
risadinhas e quando as luzes acenderam, parei estarrecida: os mortos
brincavam. Não estavam preocupados comigo. Muitos conversavam entre
si, comentando de quem veio visitá-los e falavam de saudades de seus
entes queridos. De como era ruim não poder mostrarem-se. O suor
escorria gelado em minhas costas e veio a simples constatação que
trago comigo até hoje: essa coisa de vida e de morte vai depender de
que lado você está.
De repente, alguém em cima do
muro do cemitério me grita: “ ei menina, aqui, aqui, me dá sua
mão”. Corro em direção da voz e da liberdade, subo num túmulo
antigo, alto e agarro aquela mão macia que me puxa sem dificuldades
e uma vez em cima do muro, vendo o outro lado da vida, olho uma vez
mais para dentro do cemitério e vejo tudo em silêncio. Aquele
silêncio que nos traz imensa paz, que nos dar vontade de nos
refugiarmos nele, um silêncio cheinho de luz.
Este pequeno incidente marcou-me
irremediavelmente. Incidente este que, trinta anos depois, me faz
sentar num banco que existe de frente ao cemitério e me perguntar de
onde saiu aquele homem que puxou-me pela mão tão amorosamente e
que, ao olhar para dentro do cemitério e voltar-me para agradecer
ele não estava mais lá. Quem sabe, quando eu adentrar
definitivamente esse recinto não terei mais medo nem pavor. E ele
estará me esperando, sorrindo e relembrará aquele fatídico dia em
que uma viva adentrou seu mundo e nunca mais retornou nem mesmo para
uma oração de agradecimento. Ele não sabe que naquele fatídico
dia eu deixei lá dentro minha coragem, meus silêncios e toda minha
gratidão.